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A VIRADA NO REGIME JURÍDICO DA RESPONSABILIDADE DAS PLATAFORMAS DIGITAIS NO BRASIL

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade parcial do artigo 19 do Marco Civil da Internet inaugura uma etapa de forte impacto no modo como o país lidará com a moderação de conteúdos digitais. Ainda sem a publicação do acórdão, paira considerável incerteza quanto à extensão prática da tese fixada, mas já é evidente que a lógica estabelecida até então sofreu um redirecionamento.

Desde sua origem, o Marco Civil buscava reproduzir um equilíbrio inspirado no modelo norte-americano do safe harbor, estabelecendo que as plataformas só responderiam por conteúdos ilícitos de terceiros mediante descumprimento de ordem judicial. Antes disso, vigorava a lógica da notificação extrajudicial, que transferia às empresas a responsabilidade de avaliar a legalidade de publicações.

O que agora se anuncia é uma inflexão: embora para crimes contra a honra ainda seja exigida decisão judicial, nos casos de delitos mais graves — como pornografia infantil, crimes de ódio, terrorismo e violência contra a mulher — passa a existir um dever imediato de remoção, sem necessidade de ordem judicial. O descumprimento desses deveres será interpretado como “falha sistêmica” na moderação, conceito que abre caminho para a responsabilização civil das plataformas.

Essa mudança aproxima o Brasil de modelos regulatórios europeus. Em países como a Alemanha, a Lei NetzDG, em vigor desde 2018, impõe a remoção de conteúdos “obviamente ilegais” em até 24 horas após denúncia, com prazos maiores para casos mais complexos. Além disso, exige relatórios de transparência, canais de denúncia acessíveis e representantes locais das plataformas. O não cumprimento pode resultar em multas milionárias.

A experiência alemã revelou avanços e dificuldades. O aumento expressivo de denúncias contrasta com uma taxa relativamente baixa de remoções efetivas, demonstrando a complexidade de identificar violações diante do volume massivo de conteúdo. A isso se soma o risco de overblocking, quando empresas retiram publicações preventivamente para evitar punições, restringindo indevidamente a liberdade de expressão.

Mais recentemente, a União Europeia consolidou no Digital Services Act (DSA) um modelo mais abrangente, impondo obrigações de transparência, auditorias independentes e avaliações periódicas de riscos sistêmicos, como disseminação de desinformação ou ameaças eleitorais. O DSA ainda diferencia responsabilidades de acordo com o porte e o tipo de plataforma, buscando maior proporcionalidade regulatória.

No Brasil, a aplicação da tese do Supremo demandará das empresas políticas internas consistentes, treinamento especializado e adoção de tecnologias avançadas de monitoramento e análise. Não se trata apenas de atender às exigências legais, mas também de preservar a confiança dos usuários e a integridade do debate público.

O grande desafio será traduzir tipos penais em protocolos objetivos, capazes de guiar a atuação de moderadores e sistemas automatizados, sem cair no risco de transferir integralmente às plataformas o papel de julgadoras — algo que sempre motivou cautela no modelo do Marco Civil.

O momento exige, portanto, um redesenho cuidadoso das práticas de moderação, em diálogo com referências estrangeiras, mas respeitando os fundamentos constitucionais locais. A construção de um ambiente digital que combine liberdade de expressão com a proteção contra abusos dependerá da capacidade de integrar soluções jurídicas, técnicas e éticas, capazes de evitar a chamada “falha sistêmica” e promover um espaço digital mais seguro e plural.

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UBER RECEBE MULTA DE € 290 MILHÕES POR COMPARTILHAMENTO INDEVIDO DE DADOS

O serviço de compartilhamento de veículos Uber enfrenta uma nova penalização significativa imposta pelo órgão regulador de privacidade da Holanda, a Autoridade de Proteção de Dados (AP), no valor de € 290 milhões. A multa foi aplicada devido à transferência de dados pessoais de motoristas para a sede da empresa nos Estados Unidos, em contravenção às rigorosas normas de proteção de dados da União Europeia (GDPR). A ação foi iniciada por um grupo francês de direitos humanos, representando 170 motoristas, e julgada na Holanda devido à localização da sede europeia da Uber, em Amsterdã.

Este incidente marca a maior sanção já aplicada pela AP, que tem o poder de multar empresas em até 4% de sua receita anual global. A Uber, que registrou um faturamento global de € 34,5 bilhões no último ano, já anunciou que pretende recorrer da decisão. A AP destacou que a empresa cometeu uma “violação grave” das normas ao compartilhar informações confidenciais, como fotografias, dados bancários, antecedentes criminais e, em alguns casos, históricos médicos dos motoristas.

Embora a Uber tenha utilizado a estrutura do escudo de privacidade UE-EUA para essa transferência de dados, o Tribunal de Justiça Europeu invalidou esse acordo em 2020, afirmando que ele não oferecia proteção adequada contra a vigilância governamental aos cidadãos da UE.

Esta não é a primeira vez que a Uber é sancionada pelo regulador holandês. Em 2018, a empresa foi multada em € 600.000, e em janeiro deste ano, recebeu outra multa de € 10 milhões por práticas relacionadas à privacidade, incluindo a dificuldade desnecessária imposta aos motoristas para acessarem suas próprias informações.

A proteção de dados na Europa, regulamentada pelo GDPR, é um direito fundamental que impõe às empresas e governos a responsabilidade de tratar dados pessoais com rigor. No entanto, fora da Europa, a realidade é diferente, com governos frequentemente acessando dados em larga escala sem as mesmas salvaguardas. Este caso destaca a importância da conformidade global com as normas de privacidade, especialmente em um cenário onde a proteção dos dados pessoais se tornou uma questão central na relação entre empresas e seus usuários.