Publicado em

LGPD, DIPLOMACIA DIGITAL E O DESAFIO DAS TRANSFERÊNCIAS INTERNACIONAIS DE DADOS

A revolução digital deste século, marcada pela massificação da internet e pela circulação de informações em escala nunca vista, inaugurou uma nova ordem jurídica para a proteção da privacidade. Os dados pessoais passaram a ser compreendidos como ativos estratégicos, comparados ao “novo petróleo”, exigindo normas específicas para equilibrar inovação tecnológica, segurança e direitos fundamentais.

Foi nesse contexto que surgiram legislações como o Regulamento Europeu de Proteção de Dados (GDPR), em vigor desde 2018, e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil, que entrou em plena aplicação em 2020. Ambas compartilham a missão de proteger liberdades individuais e assegurar tratamento responsável de dados pessoais, estabelecendo padrões que influenciam empresas em todo o mundo.

Um levantamento recente da International Association of Privacy Professionals aponta que 144 países já contam com normas nacionais de proteção de dados. Isso significa que mais de 6,6 bilhões de pessoas — aproximadamente 82% da população mundial — estão hoje abrangidas por algum tipo de legislação sobre o tema.

Transferências internacionais e soberania regulatória

A LGPD trouxe diretrizes rigorosas para a transferência de dados pessoais ao exterior. Tais fluxos somente são permitidos se o país de destino demonstrar nível de proteção equivalente ao brasileiro ou se forem adotadas salvaguardas específicas, como cláusulas contratuais padrão, regras corporativas globais ou certificações.

Em 2024, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) editou resolução que define os critérios de “nível adequado de proteção” e estruturou mecanismos legais para validar transferências internacionais. Trata-se de um movimento alinhado ao que a legislação europeia também exige, ao condicionar a exportação de dados a garantias sólidas de conformidade.

Pressões comerciais dos Estados Unidos

O debate ganhou contornos geopolíticos com a decisão recente do governo norte-americano de instaurar investigação formal contra o Brasil, com base na Seção 301 da Lei de Comércio de 1974. O argumento central é de que a legislação brasileira seria restritiva em excesso, dificultando a livre circulação de dados para os Estados Unidos e impondo barreiras a empresas daquele país.

Para Washington, os requisitos da LGPD podem atrapalhar operações comerciais rotineiras, inviabilizando a prestação de serviços a partir de servidores próprios e comprometendo a integração transfronteiriça. O embate revela como a proteção de dados ultrapassa as fronteiras da privacidade e passa a ocupar espaço estratégico no comércio internacional.

Contrastes com a União Europeia

A situação chama atenção especialmente quando se observa que Estados Unidos e União Europeia assinaram, em 2023, um novo acordo de transferência de dados — o Data Privacy Framework — com o objetivo de restaurar a segurança jurídica para fluxos transatlânticos.

Entretanto, a regulação norte-americana permanece fragmentada e setorial, sem a existência de uma lei federal geral de proteção de dados. Essa ausência cria dificuldades para que outros países reconheçam equivalência de padrões, em especial aqueles que se inspiraram no modelo europeu, como o Brasil.

Desafios e perspectivas

A disciplina sobre transferências internacionais de dados cumpre papel estratégico: preserva a privacidade dos cidadãos, fortalece a soberania normativa e cria previsibilidade para empresas globais. Ao mesmo tempo, estimula a elevação de padrões internacionais e consolida um ambiente digital mais seguro e confiável.

A atuação da ANPD, nesse contexto, tem buscado construir um equilíbrio entre segurança jurídica e valores democráticos, reforçando a ideia de que a regulação de dados não é apenas uma questão técnica, mas também de política pública e diplomacia econômica.

A história do direito ensina que a cada transformação social e tecnológica surgem novas demandas de proteção. Hoje, o desafio é ajustar a legislação ao ritmo das inovações digitais, sem perder de vista a defesa da dignidade humana. O direito da privacidade, que já foi redefinido tantas vezes ao longo dos séculos, continua a se expandir para responder às exigências de um mundo hiperconectado.

Publicado em

O QUE DIZ A LEI SOBRE O USO DOS SEUS DADOS PELAS INTELIGÊNCIAS ARTIFICIAIS

A difusão das plataformas de inteligência artificial generativa tem transformado significativamente a interação dos usuários com as tecnologias digitais. Desde sua adoção em larga escala, modelos como o ChatGPT, desenvolvidos por empresas americanas, destacam-se pela capacidade de fornecer respostas coerentes e precisas, conquistando rapidamente usuários em diversas regiões, incluindo o Brasil.

Por outro lado, modelos provenientes da China chamaram a atenção inicialmente por sua eficiência técnica, mas também geraram debates relacionados à transferência de dados pessoais para servidores localizados naquele país, levantando questionamentos sobre privacidade e segurança da informação.

O debate sobre regulação e proteção de dados envolvendo essas tecnologias está em constante desenvolvimento. Assim, a reação do público e dos órgãos reguladores varia conforme a origem da plataforma e as práticas adotadas. Independentemente dessas diferenças, é fundamental observar com atenção qualquer transferência de dados pessoais para fora do território nacional, considerando o destino das informações e o cumprimento das normas aplicáveis.

Essa discussão envolve não apenas aspectos regulatórios, mas também questões relacionadas à geopolítica e à regulação do fluxo internacional de dados. Dado que os conflitos entre grandes potências ultrapassam a esfera das normas de proteção de dados, o foco desta análise será restrito à regulação da transferência internacional de dados pessoais, tema relevante para todas as plataformas de inteligência artificial generativa acessíveis no Brasil.

No ordenamento jurídico brasileiro, a transferência de dados pessoais para outros países está submetida à Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018). Os artigos 33 a 36 estabelecem que esse tipo de transferência só pode ocorrer mediante cumprimento de condições específicas previstas na legislação, como a existência de decisão de adequação da autoridade reguladora, consentimento expresso do titular ou a utilização de cláusulas contratuais padrão aprovadas pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).

Em agosto de 2024, a ANPD publicou norma regulamentadora detalhando procedimentos para reconhecimento de países e organismos considerados adequados, assim como para a disponibilização de cláusulas-padrão e avaliação de outras ferramentas regulatórias. Entretanto, mecanismos de transferência previstos na lei que não dependam de regulamentação continuam vigentes, desde que cumpram os requisitos legais.

Cabe destacar que a regulamentação diferencia a coleta internacional de dados, quando a empresa obtém os dados diretamente em outro país, da transferência internacional, que ocorre quando um controlador envia dados sob sua posse para o exterior.

Os sistemas de inteligência artificial generativa mencionados encontram-se sob a vigência da LGPD, o que impõe às empresas responsáveis a observância dos princípios e regras, principalmente quanto à transparência sobre os tratamentos realizados.

Dessa forma, é esperado que os termos de uso e, principalmente, as políticas de privacidade informem claramente quais mecanismos legais fundamentam as transferências internacionais de dados pessoais, conforme o princípio da transparência previsto na legislação brasileira.

Por meio de um estudo recente realizado em parceria com um centro de tecnologia e sociedade, foram avaliadas as práticas de transparência de diversas plataformas de inteligência artificial generativa. A pesquisa identificou que a maioria dos serviços não fornece informações claras sobre os mecanismos utilizados para transferência internacional de dados, tampouco detalha os países que recebem essas informações.

Um exemplo elucidativo é o modelo chinês que, conforme sua política de privacidade, não esclarece adequadamente quais dados pessoais são enviados a servidores locais ou retransmitidos para outras regiões, o que tem gerado questionamentos regulatórios e notificação por autoridades internacionais.

No mesmo sentido, a plataforma americana, embora utilize servidores em território norte-americano para transferência de dados, não tem enfrentado o mesmo grau de questionamento público. Sua política de privacidade também deixa lacunas em relação à explicitação dos mecanismos adotados para a transferência internacional.

Importa mencionar que, ao contrário da China, os Estados Unidos não dispõem de legislação federal específica sobre proteção de dados pessoais nem de autoridade reguladora dedicada ao tema, o que reflete em dificuldades para a celebração e manutenção de acordos internacionais de proteção, como evidenciado por decisões recentes de tribunais europeus.

Os acordos em vigor entre Estados Unidos e União Europeia não têm validade para o Brasil, o que reforça a necessidade de observância rigorosa da legislação nacional para todas as transferências internacionais de dados.

Ao analisar as demais plataformas avaliadas, verifica-se que o quadro de insuficiência de transparência e conformidade regulatória é generalizado, independentemente do país de origem.

Por mais que algumas dessas tecnologias ainda não recebam ampla atenção do público, o tema da proteção de dados merece constante monitoramento pelas autoridades brasileiras. A percepção pública acerca da segurança das informações parece estar mais relacionada a fatores culturais e políticos do que a uma avaliação técnica aprofundada.

A preocupação com a coleta e transferência internacional de dados pessoais não é nova. Desde o final do século passado, temas ligados ao controle de dados financeiros e, atualmente, ao uso intensivo de informações pessoais em dispositivos móveis, evidenciam a relevância da proteção de dados.

A inovação tecnológica amplifica o alcance do monitoramento, aumentando a exposição dos titulares a riscos relacionados à privacidade e à segurança, especialmente em um contexto de compartilhamento internacional de informações entre empresas privadas e entes governamentais.

Diante disso, é fundamental que a sociedade e os órgãos reguladores no Brasil mantenham atenção contínua sobre todas as plataformas tecnológicas operantes no país, exigindo cumprimento rigoroso das normas de proteção de dados pessoais. É importante evitar julgamentos baseados apenas na origem geográfica das empresas ou em sua popularidade, priorizando critérios técnicos e legais para assegurar a proteção dos direitos dos titulares.

Publicado em

ATUALIZAÇÃO DO GLOSSÁRIO DA ANPD FORTALECE COMPREENSÃO DA LGPD

A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) recentemente concluiu a atualização de mais 40 termos em seu glossário, uma ferramenta crucial para o entendimento e a difusão dos conceitos fundamentais relacionados à proteção de dados pessoais no Brasil.

A ampliação e a revisão do glossário foram motivadas pela recente aprovação de regulamentos significativos, incluindo as normas sobre comunicação de incidentes de segurança, diretrizes para a atuação dos encarregados pelo tratamento de dados pessoais e as regras de transferência internacional de dados pessoais, bem como as cláusulas-padrão contratuais. Essas mudanças criaram a necessidade de se incorporar novos termos e revisitar conceitos já existentes, garantindo que os profissionais da área e o público em geral tenham acesso a definições claras e atualizadas.

O processo de revisão foi conduzido pela equipe da Coordenação-Geral de Normatização (CGN), com o compromisso de assegurar a precisão e a clareza dos termos revisados. A atualização do glossário já foi disponibilizada ao público no portal da ANPD, representando um avanço importante para a disseminação de conhecimento sobre a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Com essa iniciativa, busca-se fortalecer a compreensão sobre os princípios e diretrizes da LGPD, facilitando a consulta e a aplicação das normas por profissionais da área, além de proporcionar maior acesso à informação para cidadãos interessados em compreender melhor a proteção de dados pessoais.